Quando se trata de enganar, o uso de números
é a ferramenta mais eficaz para manipular o público. É o que defende Charles
Seife, mestre em matemática pela Universidade de Yale e professor de jornalismo
na Universidade de Nova York, no livro "Os Números (Não)
Mentem".
Segundo Seife, qualquer fraude ganha
veracidade quando a matemática é empregada. As teses mais absurdas são
"fundamentadas" em estatísticas questionáveis, e isso acontece com
frequência.
"Nossa sociedade hoje está submersa em
falsidades numéricas. Usando um punhado de técnicas poderosas, milhares de
pessoas forjam números sem fundamentos e nos faz engolir inverdades",
acusa Seife.
Para compor o volume, o autor analisou
diversas informações divulgadas pela imprensa mundial. A proposta da edição é
desenvolver no leitor um ceticismo necessário para combater esses dados.
Na civilização ocidental, algarismos possuem
uma força quase mística. Com essa arma, qualquer pessoa inescrupulosa pode
interferir em eleições, promovendo ou derrubando candidatos, ou maquiar a
eficiência de um produto.
Abaixo, leia um trecho do exemplar.
Falácias matemáticas
"A mentalidade americana parece
extremamente vulnerável à crença de que qualquer conhecimento exprimível em
números na verdade é tão definitivo e exato quanto as cifras que o
expressam."
Richard Hofstadter, Anti-Intellectualism
in American Life
"Em minha opinião, o Departamento de
Estado, um dos mais importantes do governo, está totalmente infestado de
comunistas." Mas não foram essas as palavras que, pronunciadas diante de
um pequeno grupo de mulheres do estado da Virgínia Ocidental, projetaram o
desconhecido senador do Wisconsin para o centro das atenções públicas. Foi a
frase que vinha logo a seguir.
Brandindo um maço de papéis, o carrancudo Joe
McCarthy conquistou seu lugar nos livros de história com uma afirmação
impudente: "Tenho aqui em minhas mãos uma lista de 205. Uma lista de
nomes, de conhecimento do secretário de Estado, que são membros do Partido
Comunista e, apesar disso, continuam trabalhando e ditando os rumos no
Departamento de Estado."
Aquele número - 205 - foi como uma descarga elétrica
que levou Washington a agir contra os comunistas infiltrados. Pouco importa que
fosse mentira. A conta chegou a 207 e voltou a cair no dia seguinte, quando
McCarthy escreveu ao presidente Truman dizendo: "Conseguimos compilar uma
lista de 57 comunistas no Departamento de Estado." Alguns dias depois, o
número se estabilizou em 81 "riscos à segurança". McCarthy fez um
longo discurso no Senado, fornecendo mais detalhes sobre grande número de casos
(menos de 81), mas não revelou dados suficientes para que se checassem as
afirmações.
Na fato, não importava se a lista tinha 205,
57 ou 81 nomes. O simples fato de McCarthy associar um número às acusações lhes
conferia uma aura de verdade. Será que o senador faria declarações tão
específicas se não tivesse provas? Ainda que as autoridades da Casa Branca
desconfiassem de um blefe, os números faziam com que elas duvidassem de si
mesmas.¹ As cifras davam peso às acusações de McCarthy; eram muito sólidas,
específicas demais para serem ignoradas. O Congresso foi obrigado a realizar
audiências na tentativa de salvar a reputação do Departamento de Estado - e do
governo Truman.
O fato é que McCarthy mentia. O senador não
fazia a menor ideia se o Departamento de Estado abrigava 205, 57 ou um só
comunista; atirava a esmo e sabia que as informações em que se baseava de nada
valiam. Porém, de uma hora para outra, depois de tornar pública a acusação e de
o Senado declarar que realizaria audiências sobre o assunto, precisava
encontrar alguns nomes. Assim, procurou o magnata da imprensa William Randolph
Hearst, anticomunista inflamado, para ajudá-lo a compor uma lista. Como se
recorda Hearst: "Joe nunca teve nenhum nome. Ele nos procurou. 'O que eu
vou fazer? Vocês precisam me ajudar.' Então, demos a ele um punhado de bons
repórteres."
Nem o auxílio de meia dúzia de repórteres e
colunistas de Hearst pôde dar alguma substância à lista de McCarthy. Quando
começaram as audiências, em março de 1950, ele não foi capaz de apresentar o
nome de um só comunista a serviço do Departamento de Estado. Isso não
fazia a menor diferença. As acusações numéricas de McCarthy haviam chegado no
momento certo. A China acabava de se tornar comunista e, no final das
audiências, a Coreia do Norte invadiu a do Sul. Os Estados Unidos estavam
aterrorizados com a crescente onda comunista no mundo, e o blefe do parlamentar
o transformou, quase do dia para a noite, num símbolo de resistência. Um
obscuro senador do baixo clero havia se tornado uma das figuras políticas mais
famosas e polêmicas. Seu discurso sobre os 205 comunistas foi uma das mentiras
mais eficientes da história americana.
A força do discurso de McCarthy vinha de um
número. Embora fosse uma ficção, aquilo conferia credibilidade às mentiras do
senador, sugerindo que o maço de papéis em suas mãos estava cheio de fatos
incriminadores sobre funcionários específicos do Departamento de Estado. O
número 205 parecia uma "prova" sólida de que as acusações do
parlamentar deviam ser levadas a sério.
Como sabia McCarthy, os números podem ser uma
arma poderosa. Em mãos ágeis, dados adulterados, estatísticas fajutas e
matemática ruim podem dar aparência de verdade à ideia mais fantasiosa, à
falsidade mais acintosa. Podem ser usados para oprimir os inimigos, destruir os
críticos e pôr fim à discussão. Algumas pessoas, aliás, desenvolveram uma habilidade
extraordinária no uso de números forjados para provar falsidades. Tornaram-se
mestres da falácia matemática: a arte de empregar argumentos matemáticos
enganosos para provar algo que nosso coração diz ser verdade - ainda que não
seja.
Nossa sociedade hoje está submersa em
falsidades numéricas. Usando um punhado de técnicas poderosas, milhares de
pessoas forjam números sem fundamentos e nos fazem engolir inverdades.
Anunciantes adulteram números para nos convencer a comprar seus produtos,
políticos manipulam dados para se reeleger. Gurus e profetas usam cálculos
fraudulentos para nos fazer acreditar em previsões que parecem nunca se
realizar. Negociantes usam argumentos matemáticos enganosos para tomar nosso
dinheiro. Pesquisas de opinião fingem ouvir o que temos a dizer e usam falácias
matemáticas para nos dizer em que acreditar.
Às vezes, essa gente recorre a essas técnicas
para tentar nos convencer de bobagens e absurdos. Algumas pessoas, inclusive
cientistas, já lançaram mão de números falsos para mostrar que, um dia, os
velocistas olímpicos vão romper a barreira do som e que existe uma fórmula
exata para determinar quem tem a bunda perfeita. Não há limites para o grau de
absurdo das falácias matemáticas.
Ao mesmo tempo, esses truques têm consequências
gravíssimas. Invalidam eleições, coroando vencedores sem legitimidade - tanto
republicanos quanto democratas. Pior ainda, são usados para manipular os
resultados de eleições futuras; políticos e juízes empregam cálculos
distorcidos para influenciar distritos eleitorais e comprometer o recenseamento
que determina quais americanos serão representados no Congresso. As
falsificações numéricas, em grande medida, são responsáveis pela quase
destruição de nossa economia - e pelo desaparecimento de mais de US$ 1 trilhão
do Tesouro, que desceram pelo ralo. Promotores e magistrados recorrem a números
enganosos para inocentar culpados e condenar inocentes - e até para
sentenciá-los à morte. Em suma, a matemática ruim está solapando a democracia
nos Estados Unidos.
A ameaça vem tanto da direita quanto da
esquerda. Aliás, algumas vezes parece que a falácia matemática é a única coisa
que une republicanos e democratas. Contudo, é possível reagir a ela. Quem já
aprendeu a reconhecê-la consegue identificá-la em quase toda parte, enredando o
público numa teia de falsidades evidentes. Os mais atentos encontram nesses
truques uma fonte diária da maior diversão - e da mais negra indignação.
Quando conhecemos os métodos empregados na
transformação de números em falsidades, ficamos imunizados contra eles. Quando
aprendemos a remover as adulterações matemáticas do caminho, alguns dos temas
mais controvertidos passam a ser simples e diretos. Por exemplo, a questão de
quem de fato venceu a eleição presidencial de 2000, nos Estados Unidos, fica
clara como água. (A resposta é surpreendente, e quase ninguém - nem Bush nem Al
Gore, e quase nenhum dos eleitores dos dois candidatos - estaria disposto a
aceitá-la.) Entenda as falácias matemáticas, e você será capaz de revelar
muitas verdades encobertas por um nevoeiro de mentiras.