Sempre temi os boatos. Sendo uma pessoa pública, sei que não estou imune a eles. Há algum tempo fui vítima de um "boato verdadeiro". Pode parecer uma contradição, mas eu explico.
Recentemente, recebi uma visita em minha casa. Na sala, conversamos sobre vários assuntos em um clima de extrema cordialidade. Como acontece freqüentemente na casa dos pastores, o telefone tocou, interrompendo nossa prosa.
Desculpei-me e fui atendê-lo. A pessoa que me ligava pediu ajuda e logo percebi que ficaria alguns minutos na linha. Da cozinha, com o telefone ao ouvido, acenei pedindo a compreensão de meu hóspede. Foi aí que observei meu suposto amigo evangélico contemplando a estante de nossa sala. Seus olhos estavam tingidos com um tom investigador; queriam bisbilhotar. Como minha conversa se converteu em um aconselhamento, concentrei-me no que falava, sem entender do visitante o porquê de seu enorme interesse por minha estante. Retornei à sala. Esperava um ambiente como o de outrora - cordial. Entretanto, o clima era constrangedor. Não entendi. Dois meses depois tudo se esclareceu.
Ele havia descoberto, entre os muitos CD's que possuímos, o nome de Chico Buarque de Holanda, Caetano Veloso, e, tome o seu fôlego, Chitãozinho e Chororó.
De minha casa saiu a espalhar para todos que quisessem ouvir: "O Ricardo Gondim ouve música do mundo".
Alguns amigos mais preocupados me aconselharam: "Cuidado com quem você convida para sua casa". Outros tentaram ajudar: "Ricardo, o melhor mesmo é você se desfazer desses discos, eles vão destruir a sua respeitabilidade nos círculos evangélicos". Não havia como desmentir, o boato era verdadeiro.
Recuso-me a jogar fora os meus discos; não me tornarei mais seletivo quanto às pessoas que visitam minha casa. Como não aceito viver uma realidade particular diferente da minha imagem pública, tentarei refletir o que significa música não evangélica ou "música do mundo".
A primeira pergunta que devemos fazer nesse assunto é: Uma pessoa não convertida pode produzir o que for nobre, que leve à reflexão, divirta ou edifique? A resposta obviamente é sim. Um erudito como Rui Barbosa, embora nunca tenha feito parte de uma igreja evangélica, escreveu artigos e ensaios sobre o direito e a cidadania tão dignos que servem de ilustração, inclusive, para um sermão. Um estadista, como Winston Churchil pôde nos brindar com um discurso tão verdadeiro, que todos, inclusive os pastores, devem aplaudir. Um poeta como Carlos Drummond de Andrade, embora um ateu professo, deixou-nos um legado poético espetacular.
A teologia da queda não propõe que os descendentes de Adão sejam incapazes de boas ações. A alienação do pecado não anula completamente a imagem de Deus nos homens. Todos os seres humanos, mesmo os mais vis, ainda carregam traços do Criador. Isto os habilita a praticar boas obras. A prostituta Raabe ajudou os espias em Jerico mesmo sem ter completo conhecimento de Jeová. Ciro, o rei da Pérsia, foi usado como instrumento de Deus, mesmo sem qualquer indício de que ele jamais tenha se rendido a Deus como Senhor de sua vida. Devemos nos lembrar do samaritano que ajudou o moribundo na beira do caminho entre Jerusalém e Jerico. Na concepção dos judeus, somente os verdadeiros filhos de Abraão seriam capazes de agir com dignidade. Porém, Cristo dá o troféu da bondade a um estranho. Mais tarde, Cristo afirma que os filhos das trevas são, muitas vezes, mais sábios que os filhos da luz (Lc 16:8). Deduz-se que um juiz não necessita converter-se para conduzir um tribunal com justiça. Um fiscal pode, mesmo nunca tendo experimentado o novo nascimento, manter-se íntegro. Um artista é capaz de pintar, compor, escrever ou esculpir obras de arte mesmo sem ter se submetido ao senhorio de Cristo.
Na história da humanidade houve grandes compositores que escreveram e nos encantaram com peças belíssimas. Muitos deles não eram cristãos convertidos. Mozart, Tchaikovsky, Beethoven, dotados de um gênio musical ímpar, não possuíam uma vida consagrada a Deus. A imagem do Criador neles é que transbordava em excelência musical. Michelangelo, Rodin, e tantos outros escultores conseguiram dar vida e significado às pedras brutas de mármore, metais contorcidos e blocos de granito, porque a "Graça Comum" habilitava-os. Arquitetos, romancistas, decoradores, pintores e tantos outros homens e mulheres presenteiam-nos constantemente com suas obras de arte, porque Deus faz com que sua graça seja derramada tanto sobre os justos como sobre os injustos.
Quando alguém declara que não ouve "música do mundo", está afirmando que não reconhece nenhuma pessoa, a não ser os convertidos, com a capacidade de produzir um texto, uma música ou qualquer expressão artística louvável. Essa posição é no mínimo incoerente. Pois essa mesma pessoa lê jornais, revistas, ouve o noticiário e, na escola, estuda através de livros escritos por pessoas não-cristãs.
Fernando Pessoa foi, seguramente, o maior poeta da língua portuguesa. Suas poesias expressam sentimentos, angústias e perplexidades. Ele foi genial. Sem nunca professar fé em Deus, transmitiu com formosura o que há de mais divino nos seres humanos: nossa capacidade criativa. Não lê-lo não significa santidade, mas limitação intelectual. Seu poema Mar Português contém valores sublimes. Com beleza e verdade, Pessoa nos comunicou coragem e magnificência:
Ó mar Salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.
Torna-se necessário entender um pouco sobre a música; como ela nasce no coração do artista e quais os seus componentes. Uma música contém letra e melodia; é poesia cantada. Assim como há lindas músicas compostas por não-cristãos (Villa Lobos, Tom Jobim), há poesias escritas por pessoas não-convertidas, igualmente belíssimas. Cecília Meireles escreveu uma poesia sobre Deus com uma sensibilidade impressionante; novamente os lampejos da imagem de Deus e da graça comum são percebidos nos versos bem alinhados de sua obra:
Falai de Deus com a clareza
da verdade e da certeza:
com um poder
de corpo e alma que não possa
ninguém, à passagem vossa,
não o entender.
Falai de Deus brandamente,
que o mundo se pôs dolente,
tão sem leis.
Falai de Deus com doçura,
que é difícil ser criatura:
bem o sabeis.
Falai de Deus de tal modo
que por Ele o mundo todo
tenha amor
à vida e à morte, e, de vê-Lo,
o escolha como modelo superior.
Com voz, pensamentos e atos
representai tão exatos
os reinos seus,
que todos vão livremente
para esse encontro excelente.
Falai de Deus.
Há uma segunda questão a ser abordada quanto a "música do mundo". Diz respeito aos temas que ela aborda. O que faz uma música sacra é quando ela se restringe a assuntos espirituais? Ou se limita a louvar diretamente a Deus? A resposta também é não. Uma música para ser sagrada não necessita limitar-se em louvar a Deus ou versar sobre assuntos espirituais. A Bíblia contém um livro, Ester, que não trata diretamente de Deus (sequer o menciona), mas deixa sua presença implícita por todo o texto. Em Ester, Deus é louvado na história do comportamento dela como rainha, comportamento que se mostrou fundamental na preservação do povo judeu. A pureza do texto vem do tema que ela trata. Tudo o que engrandece a humanidade, enriquece o espírito, leva à reflexão da verdade ou faz questionar os valores da vida é digno. Na determinação da sacralidade de uma obra não há um imperativo de que se dirija sempre a Deus.
Fernando Pessoa, como fosse muito avesso ao catolicismo português, trata o tema da religiosidade com desdém. Entretanto, quando escreve sobre temas variados, ele nos leva, até sem querer, a meditar na grandeza de Deus:
Padrão
O esforço é grande o homem é pequeno.
Eu, Diogo Cão, navegador, deixei
Este padrão ao pé do areai moreno
E para diante naveguei.
A alma é divina e a obra é imperfeita.
Este padrão sinala ao vento e aos céus
Que, da obra ousada, é minha a parte feita:
O por-fazer é só com Deus.
Ao imenso e possível oceano
Ensinam estas quinas, que aqui vês,
Que o mar com fim será grego e romano:
O mar sem fim é português.
E a cruz ao alto diz que o que me há na alma
E faz a febre em mim de navegar,
Só encontrará de Deus na eterna calma
O porto sempre por achar.
A própria Bíblia contém um livro de adágios populares -Provérbios - e nós o reputamos por sagrado. Embora o cânon tenha estabelecido que Salomão o compilou, Provérbios contém máximas que o povo judeu tinha como verdadeiras. Muitos dos conselhos deste livro canônico não tratam de nosso relacionamento com Deus, mas dos devedores, com os verdadeiros e falsos amigos e com nossos pais. Ora, mesmo abordando temas do cotidiano da vida e contendo adágios populares, Provérbios é sagrado.
Pouco conheci meu avô. Quando cheguei à minha adolescência, ele já estava contaminado pelo câncer. Quando penso nele, facilmente posso recordar seu lamento e gemido que nas madrugadas ecoavam pela casa, amedrontando meu sono. Lembro-me dele como um homem sofrido, carcomido por um tumor maligno que o matou aos poucos. Tudo o mais que sei do vovô José Gondim me foi contado pelas minhas tias e mãe.
Era um intelectual da boêmia. Embora não tenha cursado mais que a terceira série primária, fazia parte das rodas de cerveja dos primeiros sociólogos de Fortaleza. Disciplinadamente venceu suas limitações escolares através do autodidatismo. Apaixonou-se pela causa política e tornou-se um dos fundadores do P.C.B. no Ceará.
Infelizmente, em detrimento de sua família. Meu avô literalmente abandonou sua enorme família à própria sorte. Foi um péssimo pai, um marido displicente e um mau provedor financeiro da sua casa. Devido aos seus incontáveis porres, minha avó sofreu horrores para cuidar e educar minha mãe, três irmãs e um irmão caçula. Hoje, meu avô produz em mim emoções ambíguas, tenho profunda compaixão de seus sofrimentos finais, reprovo-o por ter feito minha avó sofrer tanto, mas também o admiro pela sua intelectualidade intuitiva.
Meu avô me ensinou muito. Ele era um homem de adágios, gostava de me dar lições de moral usando provérbios. Embora agnóstico e muito arredio aos assuntos religiosos, contribuiu para minha formação. Ainda posso achar nos porões empoeirados de minha memória vestígios de frases que ele me legou e que me acompanharão pelo resto da vida: "Ricardo, nunca tenha a filosofia do 'viva o luxo e morra o bucho'". Queria que eu aprendesse que ninguém deve viver de aparências para com os de fora ao preço de deixar faltar o essencial na mesa. Às vezes ele me admoestava: "Não fique esperando por quem não ficou de vir". Era seu jeito maroto de me ensinar a não depositar minhas esperanças em quem não merecesse minha confiança.
Assim como eu aprendi do meu avô ateu, todo cristão poderá mencionar algum incrédulo que foi de grande influência em sua formação moral, profissional ou sentimental. Às vezes, um professor, um vizinho ou mesmo nossos pais, nos ensinam verdades e princípios essenciais para a vida. Depois de convertidos não podemos descartar essa herança que nos foi deixada e que contribuiu para nossa maturidade.
Carlos Drummond de Andrade era ateu, e talvez jamais tenha colocado os seus pés em uma igreja evangélica. Sua pena magistral, entretanto, conseguiu levar as pessoas a refletir sobre verdades da vida. É verdade que ele não inspirou a ninguém a conhecer Jesus como Salvador. Todavia, sem querer até, transmitiu réstias da luz divina. Qual a nossa postura com respeito a ele? Devemos ouvir quando ele fala sobre a vida, refletir sobre os conteúdos que ele nos comunica e entender a situação espiritual em que ele se encontrava quando nos transmite sua angústia sobre Deus, sempre admirando seu brilhantismo.
Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Por que o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E coração está seco.
Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.
Assim como a sabedoria do povo ou a pena do poeta expressam verdades eternas, as manifestações de amor dos enamorados também podem exprimir os vestígios do caráter de Deus que ainda existem em todos os seres humanos. O que dizer do livro de Cantares de Salomão? Embora haja um esforço muito grande de espiritualizar o livro de Cantares querendo que ele signifique o relacionamento de Deus com o seu povo, ou de Cristo com a Igreja, sua verdadeira intenção, que fica explícita em todo o livro, é celebrar o amor de um homem e de uma mulher.
Tomemos o exemplo do capítulo quatro de Cantares. Os primeiros cinco versículos são cantados pelo noivo que está fascinado pela beleza da noiva:
Como és formosa, querida minha, como és formosa. Os teus olhos são como os das pombas, e brilham através do teu véu. Os teus cabelos são como o rebanho de cabras que descem ondeantes do monte de Gileade. São os teus dentes como o rebanho das ovelhas recém-tosquiadas, que sobem do lavadouro, e das quais todas produzem gêmeos, e nenhuma delas há sem crias. Os teus lábios são como um fio de escarlate, e tua boca é formosa; as tuas faces, como romã partida, brilham através do véu. O teu pescoço é como a torre de Davi, edificada para arsenal; mil escudos pendem dela, todos broquéis de valorosos. Os teus dois seios são como duas crias, gêmeas de uma gazela, que se apascentam entre os lírios.
Será que os versículos acima são de louvor a Deus? Não. Eles falam exclusivamente sobre o relacionamento de noivos apaixonados. Por que então são sagrados? Porque o amor dos enamorados é bonito e deve ser celebrado na presença de Deus. O amor, inclusive o erótico, foi uma dádiva preciosa da Deus. Infelizmente nutrimos uma concepção católica medieval ou protestante vitoriana de que o sexo sem a função de procriar é pecaminoso. Varremos para debaixo do tapete do pieguismo religioso todo e qualquer assunto relacionado ao desejo sexual. Coramos de vergonha e não admitimos que temos libido. Desta forma, deixamos o romantismo para os boêmios e seresteiros. Tornamos nossa vida cristã seca e distante do projeto de Deus de fazer-nos felizes e alegres em tudo o que ensejarmos.
Lembro-me de uma ocasião em que eu estava presente em uma igreja que acabara de comprar um teclado. Primeiro, o pastor discorreu sobre o sacrifício necessário para adquirir aquele instrumento musical. Depois chamou o grupo de louvor da igreja e fez com que todos prometessem diante da congregação que dali nunca sairiam músicas que não fossem de louvor e adoração a Deus. Com o semblante transparecendo extrema contrição, todos juraram que aquele instrumento nunca seria usado para tocar "música do mundo". Tudo pareceu muito santo. Todavia, meu pensamento imediato foi: "Para serem coerentes com o que prometem agora, eles nunca poderão compor qualquer música baseada no livro de Cantares de Salomão.
Um filho jamais poderá tocar uma música sobre seu pai ou mãe. Em nenhum casamento se ouvirá qualquer canção sobre o amor. Se esses jovens tocarem 'Parabéns prá você', já terão quebrado esse voto".
Há diferença entre o tema central de Cantares de Salomão e uma letra de música como a que Chico Buarque de Holanda escreveu para a Carolina?
Carolina
Nos seus olhos fundo
Guarda tanta a dor
A dor de todo este mundo
Eu já lhe expliquei que não vai dar
Seu pranto não vai nada mudar
Eu já convidei para dançar
É hora, já sei, de aproveitar
Lá fora, amor
Uma rosa nasceu
Todo mundo sambou
Uma estrela caiu
Eu bem que mostrei sorrindo
Pela janela, ói que lindo
Mas Carolina não viu.
Carolina
Nos seus olhos tristes
Guarda tanto amor
O amor que já não existe
Eu bem que avisei, vai acabar
De tudo lhe dei para aceitar
Mil versos cantei para lhe agradar
Agora não sei como explicar
Lá fora, amor
Uma rosa morreu
Uma festa acabou
Nosso barco partiu
Eu bem que mostrei a ela
O tempo passou na janela
Só Carolina não viu.
Música é poesia com melodia. Chico Buarque é seguramente o maior poeta-músico do Brasil. Suas músicas são de uma riqueza literária impressionante, uma sensibilidade musical única e repletas de sentimentos genuínos. Quando ele escreveu Roda Viva (1967) tocou no âmago do que significa cair na monotonia de uma vida que anda em ciclos, sem propósito:
Tem dias que a gente se sente
Como quem partiu ou morreu
A gente estancou de repente
Ou foi o mundo então que cresceu
A gente quer ter voz ativa
No nosso destino mandar
Mas eis que chega a roda viva
E carrega o destino pra lá
Roda mundo, roda-gigante
Rodamoinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração
A gente vai contra a corrente
Até não poder resistir
Na volta do barco é que sente
O quanto deixou de cumprir
Faz tempo que a gente cultiva
A mais linda roseira que há
Mas eis que chega a roda vida
E carrega a roseira pra lá.
Roda mundo (etc.)
A roda da saia, a mulata
Não quer mais rodar, não senhor
Não posso fazer serenata
A roda de samba acabou
A gente toma a iniciativa
Viola na rua, a cantar
Mas eis que chega a roda viva
E carrega a viola pra lá
Roda mundo (etc.)
O samba, a viola, a roseira Um dia a fogueira queimou
Foi tudo ilusão passageira
Que a brisa primeira levou
No peito a saudade cativa
Faz força pro tempo parar
Mas eis que chega a roda vida
E carrega a saudade pra lá. Roda mundo (etc.)
Chico Buarque fez também música denunciando a vida sofrida e a morte de pedreiros (Construção), o poder autoritário dos militares (Cálice). Sua formidável tradução de uma letra da ópera de Dom Quixote de La Mancha, Sonho Impossível, deve ser lida como uma das raras peças literárias que se incorporaram ao nosso cancioneiro popular brasileiro:
Sonhar
Mais um sonho impossível
Lutar
Quando é fácil ceder
Vencer o inimigo invencível
Negar quando a regra é vender
Sofrer a tortura implacável
Romper a incabível prisão
Voar num limite improvável
Tocar o inacessível chão
É minha lei, é minha questão
Virar esse mundo
Cravar esse chão
Não me importa saber
Se é terrível demais
Quantas guerras terei que vencer
Por um pouco de paz
E amanhã, se esse chão que eu beijei
For meu leito e perdão
Vou saber que valeu delirar
E morrer de paixão
E assim, seja lá como for
Vai ter fim a infinita aflição
E o mundo vai ver uma flor
Brotar do impossível chão.
Chegamos à doce conclusão de que toda produção literária - romance, poesia, crônica, contos, etc. - é válida. Independente de quem as escreveu. Caso seus conteúdos forem dignos, elas devem ser consumidas por todos, inclusive os crentes.
Há músicas que enaltecem a natureza, outras que celebram o amor, outras que indagam sobre o sentido da vida. Há aquelas que lamentam um amor não correspondido, muitas que enaltecem uma musa ou um herói. Há músicas que glorificam a Deus, incentivam a oração, evangelizam, promovem o amor dos irmãos.
Algumas, também, festejam a queda dos inimigos. Todas são válidas para o propósito que foram escritas e fazem sentido quando se restringem ao seu ambiente propício. Seria tolice alternar nossos louvores a Deus com músicas de Caetano Veloso.
Mas também não faz sentido um namorado cantar uma serenata para sua querida, entoando Castelo Forte, de Lutero. Já estive em acampamentos onde os jovens planejam uma serenata para as moças e na hora de escolher as música sempre há tensão. Alguns chegam a entrar em crise. Querem cantar para as meninas e não sabem como escolher as músicas dentre o repertório evangélico. Todas as "músicas evangélicas" louvam a Deus e fazem todo sentido do mundo dentro de um templo, mas não no alpendre de um sítio às duas horas da madrugada. A tensão se acirra quando, impossibilitados de escolher uma "música evangélica" para as meninas, precisam apelar para as músicas populares. Nesse momento surge o dilema: "Eu não posso cantar 'música do mundo'".
No aniversário de meus 43 anos, o Tony, irmão querido da Betesda, contratou um grupo chamado de Trovadores Urbanos para me presentear com uma serenata. Terminávamos o culto quando eles marcharam igreja a dentro cantando músicas românticas. Até a última oração nossa atenção era para com Deus, agradecendo a ele pelo meu maior presente, a vida. Depois que salmodiamos a Deus passamos a cantar sobre a vida, sobre o amor e sobre o que faz a vida que Deus nos deu ser tão bonita.
Os Trovadores Urbanos nos ajudaram a entoar "Carinhoso", de Pixinguinha, "Eu sei que vou te Amar", do Vinícius de Morais, e tantas outras músicas bonitas. Ninguém sentiu que feriu a Deus, ou que "dessacralizamos" o ambiente de culto. Naquele momento estávamos celebrando a vida e Deus estava satisfeito. A Bíblia nos ensina a reverenciar a vida e aproveitar cada instante, porque a vida é feita de momentos, só de momentos.
Então exaltei eu a alegria porquanto para o homem nenhuma coisa há melhor debaixo do sol do que comer, beber e alegrar-se; pois isso o acompanhará no seu trabalho nos dias da vida que Deus lhe dá debaixo do sol. (Ec 8:15)
Vai, pois, come com alegria o teu pão e bebe gostosamente o teu vinho, pois Deus já de antemão se agrada das tuas obras. Em todo tempo sejam alvas as tuas vestes, e jamais falte o óleo sobre a tua cabeça. Goza a vida com a mulher que amas, todos os dias de tua vida fugaz, os quais Deus te deu debaixo do sol; porque esta é a tua porção nesta vida pelo trabalho com que te afadigaste debaixo do sol. (Ec 9:7-9)
Neste momento sinto que devo passar a palavra ao Vinícius de Morais. Como um profeta secular, ele nos ensina a fugir da pior solidão que existe. Aquela que se fecha, que teme se expor à alegria e ao amor. Infelizmente aprendemos um cristianismo muito disciplinadamente contido por regras, mas sem espaço para a alegria. Vivemos uma religiosidade fechada e triste.
Não, a maior solidão é a do ser que não ama. A maior solidão é a do ser que se ausenta, que se defende, que se fecha, que se recusa a participar da vida humana. A maior solidão é a do homem encerrado em si mesmo, no absoluto de si mesmo, e que não dá a quem pede o que ele pode dar de amor, de amizade, de socorro. O maior solitário é o que tem medo de amar, o que tem medo de ferir e de ferir-se, o ser casto da mulher, do amigo, do povo, do mundo. Esse queima como lâmpada triste, cujo reflexo entristece também tudo em torno. Ele é a angústia do mundo que o reflete. Ele é o que se recusa às verdadeiras fontes da emoção, as que são o patrimônio de todos, e, encerrado em seu duro privilégio, semeia pedras do alto de sua fria e desolada torre.1
Muitas vezes somos impedidos de ouvir e fruir muitas músicas populares devido aos nossos preconceitos. Por outro lado, o oposto também é verdadeiro. Consumimos muito lixo, porque nos foi imposto com uma roupagem evangélica. Devido ao simples fato de uma música falar em Deus, abordar temas sobre a dimensão sobrenatural não significa necessariamente que aquela música seja sacra ou evangélica.
Conheço muitas músicas que são pobres em seus conteúdos doutrinários, eivadas de erros de português, compostas por impulsos meramente comerciais. Será que poderíamos classificá-las como sagradas?
Isso nos leva a perguntar mais uma vez: O que faz uma música evangélica? Que o cantor e o compositor sejam convertidos? E se o guitarrista, ou o baterista não for evangélico? Se o sonoplasta, que está no controle da mesa de som, não for nascido de novo? Alguns ficariam surpresos em saber que a gravação da maioria dos CD's evangélicos tem uma participação mínima de crentes. Muitas vezes apenas o cantor é convertido, mas toda a banda musical é composta de homens com uma vida alheia a Deus. Isso já não seria suficiente para tachar aquele empreendimento musical como do mundo? Há muitas gravadoras que estão lançando discos com intuito de ganhar dinheiro. Há muitos cantores que nem se lembram mais porque cantam, querem apenas ficar famosos e lucrar muito. Sempre "cantando para o Senhor".
Devemos cuidar para não desenvolvermos um conceito de santidade que Deus não pede e, pior, nós mesmos não conseguimos efetivá-lo. Caso contrário, acabamos como os fariseus, atando jugos pesados demais nas pessoas e nós mesmos não podemos arcar com todas as conseqüências de nossas escolhas.
A questão dos ritmos
Mas o que dizer dos ritmos? Não seria o rock demoníaco? Não há ritmos que induzem a um frenesi tão alucinante que as pessoas perdem total controle de seus atos? Não teria o rock nascido da cultura das drogas?
Estou seguro de que a melodia, harmonia e ritmo, que se constituem como os elementos básicos da música, são amorais. Nenhum ritmo é santo ou mundano. O uso que se faz deles é que pode adquirir conotações éticas.
Entendamos primeiramente os três principais ingredientes da música: a melodia, a harmonia e o ritmo. A melodia é um desenvolvimento da língua com a acentuação das palavras; na harmonia encontramos o elemento responsável pelo desenvolvimento da arte musical; o ritmo é a base e o fundamento de toda expressão musical. O ritmo disciplina as formas mais desenvolvidas da arte musical, impondo suas leis à expressão desordenada.
Os fenômenos resultantes da cooperação com melodia, harmonia e ritmos são as consonâncias e as dissonâncias. Acusa-se, por exemplo, o rock de ser uma música demoníaca por permitir uma prioridade das dissonâncias. "Essa acusação é fruto de mero preconceito; não existe música de valor sem as dissonâncias. A própria definição do que seja uma coisa ou outra varia muito. Na Idade Média os europeus consideravam dissonantes certos acordes que parecem perfeitamente consoantes ao ouvinte moderno. Essas diferenças ainda são muito maiores quando se compara a música européia (e americana) com a indiana ou chinesa, diferenças que chegam até a incompreensão mútua". 2
Já existem inúmeros ritmos catalogados. Desde os tempos mais antigos, eles nascem na cabeça dos músicos e vão transformando-se à medida que novas gerações vão dando continuidade àquele conceito musical. A música mais conhecida no Brasil é o samba; nos Estados Unidos é o jazz cheio de improviso; na Índia é a música védica, que não tem compasso no sentido ocidental; no Caribe a rumba e o merengue são repletos de ritmos binários; na Alemanha existe a valsa, cultivada desde os membros da família de Strauss; na Itália há a tarantella; em Portugal o fado, cujo romantismo vem dos mouros. Na Argentina, o tango de compassos precisos tomou conta do mundo na voz de Carlos Gardel. Nenhum destes ritmos tem valores éticos em si mesmos e nenhum deles é mais ou menos apropriado para um cristão. Eles podem perfeitamente compor uma música sacra.
Quando nos desvencilhamos de nossos preconceitos e aprendemos a fazer diferença entre o que gostamos e o que é certo, amadurecemos. A beleza deve ser celebrada, e o cristão necessita de maturidade para desfrutá-la.
Notas
1 MORAES, Vinícius de. Para Viver um Grande Amor - Crônicas e Poemas. SãoPaulo: Cia. das Letras, p. 182.
2 Enciclopédia Britânica do Brasil. Mirador, Tomo 15, verbete 'Música',199